Novembro é o bicentenário do nascimento de Fiodor Dostoiévski. Desavisado de contextos, li “Crime e Castigo” na época de faculdade. O romance me fascinou. Na sequência, li “O Homem do Subsolo” e “O Idiota”, pouco sabendo sobre sua história e a conturbada época em que viveu.
Apenas recentemente, duas décadas depois, me debrucei sobre a megabiografia escrita por Joseph Frank, “Dostoiévski: Um Escritor em Seu Tempo”, cujos cinco volumes foram compactados num tijolo de quase mil e duzentas páginas, exímio peso de portas (antes, passavam de duas mil e quinhentas folhas).
Seria, no mínimo, deselegante recomendar uma obra dessa envergadura. Contudo, o peso da biografia foi muito bem distribuído entre a vida, a obra e o contexto social e político no qual o autor viveu.
A modernidade tem sua dívida com Dostoiévski: Nietzsche viu nele o único psicólogo capaz de ensiná-lo; Freud tinha “Os Irmãos Karamazov” como o mais belo romance escrito; Kafka, Joyce e Virginia Woolf também prestaram a ele seu louvor.
O que mais me interessou, no entanto, foi perceber como esse escritor, débil em tantos sentidos, foi forjado pelo seu tempo e pela terna força que o universaliza. A Rússia czarista era um império em que a servidão não tinha sido abolida, ameaçado pelas vanguardas iluministas e pela iminente invasão do pensamento revolucionário de jovens hegelianos de esquerda e de direita.
O primeiro romance de Dostoiévski, “Gente Pobre”, foi publicado três anos após o autor sair da melhor faculdade de São Petersburgo, onde abriu mão de uma carreira militar (então o único caminho para a ascensão social) para seguir o sonho de ser escritor.


“Gente Pobre” foi bem recebido por Vissarion Belinski, o mais influente e engajado crítico literário da época, que viu no autor debutante uma evolução de Gogol, já que substituía a ironia seca por uma sensível empatia, dando voz ao sofrido e “verdadeiro” povo russo.
A elogiosa crítica abriu portas aos mais afluentes círculos literários, nos quais o intelectualismo pré-revolucionário era semeado. Belinski e seus seguidores, contudo, exigiam que a arte cumprisse uma rigorosa função social, fazendo-a subserviente à crença ideológica à qual se filiavam. Resistente a esses preceitos, Dostoiévski rapidamente caiu no desgosto da intelligentsia que dominava a culta boemia.
Mesmo ambivalente quanto à causa revolucionária, quase somente por frequentar o círculo de Petrashevski (e ler uma carta aberta de Belinski a Gogol), Dostoiévski e outros habitués foram presos e condenados à morte por fuzilamento.
O drama de Fiodor Dostoiévski se estendeu até o dia do fuzilamento. O perdão foi anunciado apenas quando alguns dos condenados, já na escuridão do capuz, se encontravam frente ao pelotão. Podemos somente imaginar a intensidade dessa dramática experiência de quase-morte.
A pena do escritor foi convertida para prisão na Sibéria, onde ficou por quatro anos. Uma nova reforma na pena levou Dostoiévski ao serviço militar forçado e vitalício. Tempos depois, com a ajuda de pessoas influentes, conseguiu aposentar-se por invalidez e voltou a ser um homem livre para renascer como escritor.
Essa vivência na Sibéria foi transformadora para Dostoiévski, que pode atestar a grande distância entre o povo russo idealizado pelos revolucionários e os seres humanos reais, que não se viam representados por eles.
Mesmo com o círculo de Petrashevski dissolvido, uma nova onda socialista se agrupava em torno de Tchernichevski, que professava uma visão utilitarista e materialista da história, um socialismo utópico que não admitia a existência do livre arbítrio.
A radicalização das correntes “racionalistas” de esquerda despertou o autor para a criação de um novo romance: “Crime e Castigo”. Quando os primeiros capítulos do livro foram publicados, a vida imitou a arte e um jovem com aspirações similares ao emblemático protagonista, Rodya Raskolnikov, tentou assassinar Alexandre II, dando início a uma nova era de repressão e censura.
Quase dois séculos depois, a arte ainda é alvo das exigências dos discursos panfletários, e a política, polarizada. Há muita coisa entre o bem e o mal, e a expiação da culpa é caminho aberto para todos.
Somos livres para agir conforme nossa consciência, mas nunca impunemente. Nossas tragédias pessoais se atravessam como instrumentos numa sinfonia. Embora os (anti)heróis de Dostoiévski personifiquem ideias, essas últimas apenas corroboram para o caráter trágico frente a uma liberdade capaz de pesar como uma condenação – mas que, ainda assim, é uma liberdade.