5 autobiografias para você mergulhar na vida e obra – ou em parte delas – de grandes personalidades
Por Sérgio Bivar
Confissão, oração, memórias, apologia ou crítica social. Delinear o gênero autobiográfico é tão perturbador quanto atribuir o próprio sentido da vida. A mera narração de eventos históricos pode vir por outros meios, mas é somente na autobiografia que temos a voz do autor em sua expressão definitiva. Quando longe das edições de autopromoção (com orientação comercial), esse ramo literário é capaz de comportar a inigualável expressão de grandes personalidades.
É preciso coragem para se pôr diante do espelho e se desnudar, sabendo que nem tudo que se revela é digno de admiração. Assim como o homem é incapaz de ver a verdadeira face de Deus, ele é também cego para si. Cindidos de nós mesmos, a consciência sempre vacila.
Por vezes severas ou (inversamente) pretensiosas, essas obras nos acedem a um instante de intimidade com aqueles que viemos a conhecer por meio de obras perenes. Ainda que a ficção seja a verdade de um escritor, como dirá Octavio Paz, a narrativa em primeira pessoa, voz maior daquele que escreve e se inscreve, nos permite alçar uma nova relação entre vida e obra, criador e criatura.
Nesses tempos de solidão forçada, assombrados por devaneios existenciais, nada me parece mais confortante do que reencontrar as vozes dessas vidas que são obras, e dessas obras que são vidas.
Não lembro em quantas dessas me aventurei. Em retrospecto, nesses tempos pandêmicos, cinco delas senti vontade de revisitar.
Confissões (Agostinho, 397-400 DC)


Quem de certo modo inaugura o gênero, e com isso um novo espaço para a subjetividade, é Santo Agostinho.
“Confissões” é uma oração a Deus, dividida em treze partes, e faz o trajeto de Agostinho de Hipona de pecador até a sua conversão ao cristianismo. Mas, se vale a ressalva: ao entrar, deixai de fora toda a esperança de encontrar uma leitura fácil.
O que impressiona é o misto de relato pessoal, jornada espiritual e ensaio filosófico. Ninguém antes se doara à posterioridade tão intensamente. Temos na obra a vida antiga mais plenamente preservada, interiorizada. Sentir-se ao lado desse homem, que viveu dezesseis séculos atrás, compartilhar suas angústias e seu trajeto espiritual é uma aventura transformadora. Agostinho não somente se doa a Deus (e ao leitor), como também reinaugura o espaço da escrita.
Lanterna Mágica (Ingmar Bergman, 1988)


Ingmar Bergman é sem dúvida um dos maiores cineastas de todos os tempos. Idolatrado por Woody Allen, e três vezes ganhador do Oscar de Melhor Filme, ele tem uma obra prolífica. Dirigiu cerca de sessenta filmes e cento e setenta peças. Sua inigualável sensibilidade se reflete numa dupla carga de leveza e intensidade. Sensualidade, solidão e angústia permeiam toda a sua obra, que a meu ver tem sua expressão máxima com o longa “Gritos e Sussurros”. Bergman não foi somente um dos primeiros cineastas a levar o peso do existencialismo às telas; depois dele, nenhum outro jamais foi tão longe.
O livro traz passagens definidoras, e nem sempre confortáveis, da vida de Bergman, desde a sua infância. É uma espécie de autoanálise: seletiva, e flutuante. Sem deixar-se cair num tom apologético, o cineasta sueco evita ter que se definir ou se justificar. Com isso, os curtos capítulos, pequenas crônicas, são cenas isoladas que se sustentam autônomas no tempo-espaço.
Para aqueles que são ávidos por mais detalhes sobre os filmes dele, mais interessante será buscar, posteriormente, na filmografia, o narrador deste livro.
Ensaio Autobiográfico (Jorge Luis Borges, 1999)


Já cego, em 1970, Borges ditou, em inglês, esse ensaio ao seu tradutor e colaborador, Norman Thomas Di Giovanni, que serviria como introdução à publicação de “O Aleph”.
Considerado um dos maiores escritores do século passado, o argentino Jorge Luis Borges, nascido em 1899, viveu oitenta e seis anos. Mesmo tendo testemunhado o século mais notável da história mundial, em que a humanidade mostrou o seu pior e o seu melhor, é com a própria literatura com quem Borges dialoga. Assombrado por uma progressiva cegueira, e imerso desde sempre no mundo dos livros, o portenho, em sua biografia, dispensa a erudição e as habilidades labirínticas necessárias para boa leitura da sua ficção.
Esforço de autocrítica, com um olhar agradecido sobre sua longa jornada, o autor dá crédito àqueles que mais o influenciaram ao longo de uma vida plenamente devotada à literatura.
Ecce homo (Friedrich Nietzsche, 1908)


Último livro de Nietzsche, escrito dois anos antes de sua morte, quando ele já estava assolado por episódicos transtornos mentais, a obra é um esforço hiperbólico do filósofo de se autodefinir e de se proteger de maus intérpretes.
“Eis o Homem” é a suposta frase de Pôncio Pilatos ao apresentar o capturado Cristo. Com capítulos como “Porque sou tão sábio”, “Porque sou tão inteligente” e “Porque escrevo tão bons livros”, traça o desenvolvimento intelectual do autor combinando vida e obra.
Para quem nunca leu Nietzsche, “Ecce homo” é uma bela e panorâmica porta de entrada ao mundo dele. Aqui a vida se confunde com a filosofia, e a moral cristã é confrontada com o bem-aventurado e provocativo espírito dionisíaco.
Antes do Fim (Ernesto Sabato, 1999)


Ernesto Sabato é um ícone argentino, assim como Borges. O autor largou a carreira internacional como físico e flertou com o suicídio antes de escrever o curto romance “O Túnel”, elogiado por Thomas Mann e cuja publicação na França foi recomendada por ninguém menos que Albert Camus. Nele, Sabato narra em primeira pessoa as angústias de um pintor, isolado e incompreendido, fixado por uma mulher, a quem virá a assassinar.
“Antes do Fim”, seu ensaio autobiográfico, é marcado pela intensidade: apresenta o autor em sua totalidade e vai além das memórias pessoais para traçar contornos éticos e políticos, denunciando a realidade social da América Latina. Sabato afirma que o escritor deve ser testemunha de seu tempo e que a utopia deve ser vivida.